A LGPD e a autodeterminação informativa não dita por Bolsonaro

10 de junho de 2021

A autodeterminação informativa é um termo até bem antigo, tendo ganhado maior notoriedade há algumas décadas, quando mencionada pelo Tribunal Constitucional Alemão em um julgamento que é referência, até nos dias atuais, quando o assunto é proteção de dados.

Com a aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados, em 2018, pode-se dizer que a sociedade civil teve ainda mais ciência sobre o termo, uma vez que ele consta como um dos fundamentos da disciplina de proteção de dados no artigo segundo desta lei.

Assim, muito embora seja um assunto recorrentemente discutido pela doutrina e jurisprudência em vários países, não pode-se afirmar que, de fato, a essência da autodeterminação informativa seja conhecida e compreendida pelos profissionais da área, tampouco pelos representantes do governo.

No mês de abril de 2.021, o termo ganhou uma relevância na mídia nacional quando, em sessão virtual da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos), conhecido por endossar posicionamentos da extrema direita e atuar ativamente para dificultar a aprovação de direitos das minorias, confundiu autodeterminação informativa com identidade de gênero.

O vereador entendeu que, quando a LGPD menciona que um dos fundamentos da matéria é a autodeterminação informativa, na realidade a lei quer dizer que o ser humano pode se auto definir como bem entender, conforme mencionou: “Autodenomina tigre, leão, jacaré, papagaio, periquito. (…) Quem sabe emendar respeitando a biologia do ser humano”.

A interpretação do representante do legislativo não só está completamente equivocada e revela um fascínio do vereador por perseguir a luta por direitos dos LGBTQIA+, como também demonstra o profundo desconhecimento da LGPD mesmo pelos atores que representam a sociedade.
Desgostos à parte, sabe-se que a LGPD, ao contrário do que se parece – e muito se fala -, não tem o objetivo de travar as atividades de tratamento de dados pessoais das empresas, mas sim regular as relações dos titulares com os agentes de tratamento, estabelecendo, assim, deveres, obrigações e direitos a serem observados.

Nesse sentido, adentrando-se a este fundamento, é inegável perceber a sua relevância e potência quando interpretado dentro do universo da proteção dos dados pessoais. A autodeterminação informativa, ou informacional, traz a ideia de que o titular deve ser o protagonista de seus dados pessoais, devendo estar completamente ciente de cada etapa do tratamento dos seus dados, se familiarizando sobre a finalidade da coleta, como ela foi realizada, em qual momento, por quanto tempo o dado permanecerá armazenado em determinada base e em qual momento ele será excluído.

Com isto em mente e, ainda, com as mais recorrentes notícias sobre vazamento de dados divulgadas a todo momento, pode-se concluir que, nestas situações, o respectivo fundamento é inteiramente ignorado e desrespeitado, considerando ainda o fato de que, muitas vezes, os cidadãos não estão cientes que as suas informações pessoais constam em determinado banco de dados, descobrindo tal fato, então, apenas no momento que há a divulgação do incidente de segurança.

Isto posto, é de salutar o debate sobre a autodeterminação informativa, não só pelo tamanho do desconhecimento sobre o assunto que se demonstra nos mais variados setores da sociedade, mas também por ser essencial perceber que, dentro do escopo da privacidade e proteção de dados, o referido fundamento vem sendo descumprido reiteradamente quando, na realidade, deveria ser considerado àquele que conduz o art. 2º da LGPD.

Nessa toada, para compreender a essência desse termo, é necessário revisitar o julgamento do Tribunal Constitucional Federal Alemão, em 1983. Naquele ano se discutiu a constitucionalidade da Lei do Censo (Volkszählungsurteil – 1 BvR 209/83, de 15.02.1983), a qual, em linhas gerais, determinava que os cidadãos alemães disponibilizassem dados sobre profissão, moradia e local de trabalho ao Estado para que fosse apurado o estágio de crescimento populacional, bem como autorizava o Estado a comparar esses dados coletados com aquelas informações já contidas nos registros públicos, realizando-se, assim, um cruzamento de dados pessoais.

A finalidade da lei, portanto, era preencher lacunas de informações nas bases dos entes federativos para fins de execução administrativa.

O Tribunal, então, decidiu que a lei era parcialmente constitucional, argumentando que seria constitucional a coleta de dados pessoais, independente do consentimento do cidadão, bastando a permissão legal. De outro lado, a permissão geral dada pela lei para comparar e cruzar dados pessoais entre órgãos públicos foi considerada inconstitucional, já que violava o direito à privacidade e a autodeterminação informativa do cidadão.

Em suma, a decisão entendeu que o titular perderia o controle sobre como os seus dados estariam sendo utilizados, por quem tais dados seriam acessados e em quais situações eles seriam acessados, o que iria de encontro com os direitos constitucionais básicos dos cidadãos alemães.

A decisão se tornou referência e parâmetro para diversos Tribunais ao redor do mundo, inclusive para o Brasil.

Em 2020, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da cautelar no bojo da ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) nº 6.387, que foi proposta em face da Medida Provisória nº 954/2020, tratou do direito de proteção de dados pessoais, inclusive sobre a autodeterminação informativa do cidadão.

A MP nº 954/20 tinha como objetivo determinar que as empresas de telecomunicações compartilhassem os dados como nome, telefone e endereço, de todos os seus usuários com o IBGE — cerca de 226 milhões de consumidores só de telefonia móvel — para fins de pesquisas estatísticas, tendo em vista a situação de emergência de saúde pública decorrente da pandemia do Coronavírus.

No entanto, na contramão da proposta da MP, a Relatora Rosa Weber, com a concordância do Tribunal Pleno, reconheceu expressamente que a Constituição assegura aos brasileiros o direito à autodeterminação informativa, devendo o uso dos dados e informações pessoais ser controlado pelo próprio indivíduo, salvo quando a legislação estritamente determinar. Ocorre que, no caso em concreto, a MP nº 954/20 sequer delimitou o objeto da estatística a ser produzida, nem a finalidade específica da coleta, tampouco a amplitude deste tratamento. Outro ponto importante é que a proposta não esclareceu a necessidade de disponibilização dos dados nem como seriam efetivamente utilizados.

Dessa forma, ao se compreender a magnitude da autodeterminação informativa, percebe-se que este fundamento determina que o titular de forma ativa tenha o conhecimento em relação à legalidade das atividades de tratamento que percorrem os seus dados pessoais, o que atenua a possibilidade de notícias inesperadas quanto à utilização de seus dados pessoais.

Assim, constata-se que o tratamento de dados pessoais, seja quando realizado por órgãos públicos ou pelo setor privado, deve obedecer, dentro das suas especificidades, os princípios, diretrizes, fundamentos e hipóteses de tratamento previstas pela LGPD.

Portanto, cabe, tanto à sociedade civil quanto aos profissionais de proteção de dados, a elevar a importância de conceitos tão essenciais quanto o da autodeterminação informativa em todos os setores sociais e econômicos, já que é com a disseminação da cultura da LGPD que, então, espera-se alcançar um pleno conhecimento e desenvolvimento nacional sobre a importância desta lei que, embora vigente há menos de um ano, revoluciona diariamente os cenários em que se está instituída.

Para saber mais sobre este e outros temas relacionados à Direito Digital, Tecnologia, Privacidade e Proteção de Dados Pessoais, a equipe do Assis e Mendes possui especialistas prontos para atender as necessidades de sua empresa. Entre em contato conosco pelo site www.assisemendes.com.br.

Ana Carolina Teles é advogada da equipe de Privacidade e Proteção de Dados do Assis e Mendes. Bacharel em Direito pela Universidade de Itaúna (UI) e Pós-Graduada em Direito Processual Civil pela PUC/MG. Especialista em Direito Digital, Tecnologia e Proteção de Dados pelo Data Privacy Brasil, ITS/RJ e pela Escola Superior de Advocacia da OAB/SP e, atualmente, atua em projetos de implementação à LGPD, atendendo diversos nichos de mercado.

Compartilhe:

Mais Artigos

Desafios da Inadimplência: Estratégias e Alternativas à Judicialização

Descubra estratégias eficazes para lidar com a inadimplência de clientes sem recorrer imediatamente à judicialização. Este artigo explora alternativas viáveis, como o diálogo proativo, negociação amigável, formalização da cobrança e opções de resolução extrajudicial, visando preservar o relacionamento comercial e minimizar os impactos financeiros para sua empresa.

O que fazer se uma réplica do meu produto estiver sendo vendida em Marketplaces?

Marketplaces se tornaram essenciais no comércio online, mas também apresentam desafios, como a venda de produtos falsificados. Este artigo fornece orientações para lidar com réplicas ou falsificações de produtos em marketplaces, incluindo como identificar, denunciar e tomar medidas legais contra os infratores. Consultar um advogado e utilizar plataformas de proteção de marca são passos essenciais para proteger a reputação da marca e a integridade do mercado.

Uso da inteligência artificial e os impactos nas eleições de 2024. Você, candidato, está preparado?

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aprovou novas regras para as eleições de 2024, incluindo regulamentações sobre o uso de Inteligência Artificial (IA). Candidatos devem estar preparados para usar a IA de maneira eficiente, seguindo as regras estabelecidas. A IA tem sido uma tendência global há décadas e sua regulamentação visa garantir a integridade do processo eleitoral, especialmente diante da disseminação de desinformação. O TSE proíbe o uso de chatbots para simular conversas com candidatos, deepfakes e exige que conteúdos gerados por IA sejam rotulados. As plataformas de mídia social também estão sujeitas a novas regras para promover transparência e combater a desinformação.

Quais as principais cláusulas em um Contrato de Licenciamento de Software?

Os contratos de licenciamento de software estabelecem as responsabilidades entre as partes envolvidas na utilização de um software, incluindo o direito de uso e serviços adicionais como suporte técnico e atualizações. Este artigo explora cláusulas essenciais desses contratos, como objeto, propriedade intelectual, suporte técnico, nível de disponibilidade, limitação de responsabilidade e isenção em casos de ataques hackers. Essas cláusulas são fundamentais para garantir uma negociação transparente, resolver disputas e proteger os interesses das partes envolvidas.

Vesting vs. Stock Option: Definições e Diferenças que você precisa conhecer

Descubra as definições e diferenças cruciais entre Vesting e Stock Option no contexto empresarial e de tecnologia. Este artigo explora os requisitos, aplicabilidade e implicações legais de cada método de incentivo de remuneração, ajudando você a decidir o melhor para sua empresa

Contratação de Software e Serviços em Nuvem para Órgãos Públicos: O que mudou e como se preparar

Uma nova portaria estabelece um modelo obrigatório de contratação de software e serviços em nuvem para órgãos do Poder Executivo Federal, visando garantir segurança da informação e proteção de dados. A partir de abril de 2024, os órgãos públicos deverão adotar esse modelo, que inclui critérios de avaliação, formas de remuneração e níveis de serviço. Fabricantes de tecnologia devem atender a requisitos como segurança de dados, flexibilidade de pagamento e indicadores de serviço.

Entre em contato

Nossa equipe de advogados altamente qualificados está pronta para ajudar. Seja para questões de Direito Digital, Empresarial ou Proteção de Dados estamos aqui para orientá-lo e proteger seus direitos. Entre em contato conosco agora mesmo!

Inscreva-se para nossa NewsLetter

Assine nossa Newsletter gratuitamente. Integre nossa lista de e-mails.