É evidente que, com o avanço da 4ª Revolução Industrial e do aumento do uso de redes sociais, não há mais o que se falar de diferenciação entre a vida offline e a vida online. Os dados e informações pessoais que circulam na rede de computadores se tornaram uma extensão da vida física de uma pessoa, devendo ser, portanto, tratados da mesma forma quando eventos adversos ocorreram, dentre os quais: a morte.
Através de estudos e relatórios, podemos concluir que hoje o mundo tem cerca de 4 bilhões de usuários ativos na internet, o que significa dizer que cada usuário tem o seu próprio patrimônio virtual, incluindo-se, nesse acervo, áudios, fotos, vídeos, perfis em redes sociais, moedas virtuais, contas em internet banking, logins e senhas, trocas de mensagens, entre outros.
Nesse sentido, de início, destaca-se a necessidade de compreender o que é um patrimônio virtual com valor econômico daquele que apenas representa as relações de afeto por meio da comunicação nas redes. Um bom exemplo de patrimônio digital que possui valor, nos dias atuais, são os “Influencers Digitais” e/ou “Youtubers” e “Instagrammers”, os quais, através de engajamento em suas redes sociais que possuem milhares de seguidores, fazem menção a produtos e serviços e, assim, transformam os seus perfis em instrumentos extremamente rentáveis.
O grande questionamento, portanto, se pauta em entender o que ocorrerá com o patrimônio digital após a morte do usuário. Conforme o art. 1.784, do Código Civil: “Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”, isto é, a herança do falecido será transmitida após a sucessão a quem lhe couber.
Dessa forma, parte da doutrina, inclusive, recomenda-se que, considerando o avanço tecnológico que vivemos, os usuários – em vida – determinem em testamento como será a sucessão de todo o seu conteúdo digital, bem como logins e senhas referentes a perfis e contas em redes sociais, internet banking, conversas, fotos e vídeos.
Ocorre que a legislação brasileira peca por ainda não abarcar o assunto de herança digital propriamente, deixando de determinar de forma expressa o que deve ser feito em determinadas situações.
Nos últimos anos, percebemos alguns Projetos de Leis, que versavam sobre herança digital, tramitaram no Congresso, como o PL 4.847/12, PL 4.099/12, PL 1.331/15 e PL 7.742/17.
O PL 4.847/12 tinha como objetivo normatizar o assunto alterando o Código Civil, trazendo, inclusive, um conceito de herança digital: “A herança digital defere-se como o conteúdo intangível do falecido, tudo o que é possível guardar ou acumular em espaço virtual”. O projeto trabalhava com a ideia de transmissão de todo esse conteúdo aos herdeiros, que ficariam responsáveis pela administração.
Haja vista a similaridade das propostas, os PL’s 4.847/12 e PL’s 4.099/12 foram apensados. Na mesma linha do primeiro, o PL 4.099/12 também propôs alteração no Código Civil, com a proposição de incluir parágrafo único ao art. 1.788: “Serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de contas ou arquivos digitais de titularidade do autor da herança”.
Ao se analisar as propostas, verifica-se que a ideia principal é a de transmitir todo o conteúdo que o usuário dispunha nas redes sociais, ainda que em sigilo, para os herdeiros, no entanto, pode-se constatar falhas em relação à proteção da privacidade do falecido, bem como quanto à violação à intimidade tanto do falecido quanto do seu interlocutor, já que conversas e conteúdos privados seriam transmitidas aos herdeiros, isto é, fato completamente distante da expectativa de terceiros quando se comunicaram com o usuário em vida. De todo modo, os dois projetos foram arquivados.
De outra banda, o PL 1.331/15, já arquivado, propôs a alteração no Marco Civil da Internet (art. 7º, inciso X) para determinar a legitimidade do cônjuge, dos ascendentes e dos descendentes para requerer a exclusão das informações e dados pessoais nas redes em geral do usuário falecido.
Na mesma linha de alteração ao Marco Civil da Internet, o PL 7.742/17, também já arquivado, propôs que, caso o falecido não tenha deixado expresso a sua vontade em relação ao que fazer com as suas contas e perfis virtuais, estes deveriam ser excluídos de imediato. Apensado a este Projeto de Lei, o PL 8.562/17, ainda em andamento, pretende modificar o Código Civil para sedimentar o conceito de herança digital, incluindo três novos artigos no capítulo da “Herança e de sua Administração”.
Por fim, podemos citar o PL 3.050/20, o qual ainda tramita na Câmara dos Deputados e pretende modificar, na mesma linha do PL 4.099/12, o art. 1.788 do Código Civil, para determinar a transmissão de todo o conteúdo digital do falecido aos seus herdeiros.
Nesse sentido, pode-se concluir que há uma necessidade na legislação brasileira, até mesmo um pouco urgente, de normativas precisas sobre herança digital, ainda mais ao considerar a realidade virtual expansiva na qual a sociedade vive. Até porque, não há como negar que essa discussão tem ganhado cada vez mais relevância na vida civil, estando carregada de questionamentos e inseguranças em relação ao que pode ocorrer com todo esse patrimônio digital após a morte.
A orientação geral, nessa toada, é de que a legislação sobre herança digital observe princípios básicos de privacidade, proteção de dados pessoais e a vontade do falecido. Não seria benéfico regulamentar a questão, caso não se observasse o exposto acima, já que a transmissão do patrimônio virtual deve ser realizada sob a égide do Código Civil, bem como das leis setoriais.
Importante mencionar, ao fim, que não se parece prudente que a Lei Geral de Proteção de Dados pudesse versar sobre herança digital, até porque, de acordo com o Código Civil, a existência da pessoa natural termina com a morte, e, considerando que a LGPD versa sobre dados pessoais de uma pessoa natural, não haveria o que se falar em relação aos dados pessoais de uma pessoa já falecida.
Portanto, conclui-se que a matéria de Herança Digital deve ser tratada de forma específica em conjunto com as noções civilistas e protetivas de dados pessoais, bem como com as informações disponíveis na rede mundial de computadores para que, assim, possamos pacificar o seu conceito e compreender as suas particularidades de modo a alcançar o melhor interesse da sociedade atual e daquela que há de vir.
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Ana Carolina Teles é advogada da equipe de Privacidade e Proteção de Dados do Assis e Mendes. Bacharel em Direito pela Universidade de Itaúna (UI) e Pós-Graduada em Direito Processual Civil pela PUC/MG. Especialista em Direito Digital, Tecnologia e Proteção de Dados pelo Data Privacy Brasil, ITS/RJ e pela Escola Superior de Advocacia da OAB/SP, e, atualmente, atua em projetos de implementação à LGPD.