A pejotização STF ganhou novo capítulo após a Corte suspender processos em todo o país. Veja como isso muda o jogo para empresas de tecnologia.
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que suspende nacionalmente os processos judiciais envolvendo a legalidade da chamada “pejotização”, acendeu um sinal de alerta nas empresas de tecnologia — setor notoriamente marcado por estruturas contratuais flexíveis e dinâmicas. A medida cautelar, proferida pelo ministro Gilmar Mendes no âmbito do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1.387.761, com repercussão geral reconhecida (Tema 1389), interrompe, até julgamento definitivo, todas as ações judiciais que discutem a licitude da contratação de pessoas físicas por meio de pessoas jurídicas.
O presente artigo analisa os efeitos práticos dessa suspensão, seus fundamentos constitucionais, os riscos jurídicos envolvidos e orientações estratégicas para empresas de tecnologia que desejam continuar atuando com segurança nesse cenário em transformação.
1. A decisão do STF: contexto e fundamentos
O Supremo acolheu pedido da Confederação Nacional da Saúde (CNSaúde), que questionava decisões reiteradas da Justiça do Trabalho que desconsideravam contratos de prestação de serviços firmados com pessoas jurídicas, reconhecendo vínculo de emprego mesmo diante de relações formalmente empresariais.
Segundo Gilmar Mendes, há “insegurança jurídica” e “discrepância entre as decisões da Justiça do Trabalho e os precedentes do STF” que já admitiram a terceirização de atividades-fim (RE 958.252 e ADPF 324). Com base nisso, determinou-se a suspensão nacional dos processos até que o STF pacifique a questão.
2. O que está em jogo: subordinação versus autonomia
A discussão gira em torno da seguinte pergunta: a formalização de um contrato entre empresas é suficiente para afastar a relação de emprego, mesmo quando estão presentes os requisitos do art. 3º da CLT (habitualidade, pessoalidade, onerosidade e subordinação)?
Na prática, muitos profissionais atuam como “PJs” em empresas de tecnologia, mas com inserção direta na estrutura organizacional, subordinação hierárquica, horários fixos e ausência de autonomia típica de um verdadeiro prestador de serviço. Nesses casos, o Judiciário tende a desconsiderar a formalidade contratual e reconhecer o vínculo empregatício, invocando a prevalência da realidade sobre a forma.
O STF agora será chamado a definir: (i) os limites constitucionais da intervenção da Justiça do Trabalho em contratos empresariais, (ii) a distribuição do ônus da prova na alegação de fraude na contratação civil e a (iii) licitude da contratação de trabalhador autônomo ou pessoa jurídica para a prestação de serviços.
3. Por que a decisão afeta diretamente empresas de tecnologia?
Flexibilização como prática do setor
Empresas de tecnologia, startups e plataformas digitais adotam com frequência estruturas flexíveis de contratação, recorrendo a profissionais PJ para projetos específicos, prestação de serviços técnicos ou consultorias especializadas. Essa prática decorre, em parte, da necessidade de agilidade, da escassez de mão de obra altamente qualificada e da busca por racionalização de custos trabalhistas.
Risco trabalhista crescente
A despeito da formalização contratual, é comum que essas contratações se aproximem, na prática, de relações de emprego. Isso ocorre quando os requisitos para reconhecimento do vínculo empregatício estão presentes (habitualidade, pessoalidade, onerosidade e subordinação), sendo comprovados através de:
- Controle de jornada e metas rígidas;
- Subordinação direta a líderes internos;
- Exclusividade disfarçada;
- Repetição indefinida de tarefas sem autonomia técnica.
Com a suspensão dos processos, cria-se um intervalo de insegurança: as empresas podem continuar contratando via PJ, mas não terão decisões judiciais definitivas sobre a legalidade dessas relações até a manifestação final do STF. Ou seja, na prática, as empresas de Tecnologia devem continuar sendo cautelosas neste tipo de contratação, pois não há ainda parâmetros do que pode ser considerado uma Pejotização lícita ou ilícita pelo STF.
Reputação e ESG trabalhista
Além do passivo jurídico, a contratação irregular de PJs pode gerar danos reputacionais, especialmente diante de políticas de ESG (Environmental, Social and Governance) que exigem boas práticas nas relações de trabalho. Em um cenário de maior transparência institucional, a exposição de pejotização fraudulenta pode impactar investimentos e relações com stakeholders.
O que pode mudar após o julgamento definitivo?
O julgamento poderá estabelecer diretrizes vinculantes que impactarão profundamente o modo como o ordenamento jurídico brasileiro enxerga a contratação de pessoas físicas por meio de pessoas jurídicas. Trata-se de uma oportunidade para o Supremo Tribunal Federal definir com mais precisão os limites entre a liberdade contratual nas relações civis e empresariais e a proteção dos direitos sociais do trabalhador, constitucionalmente assegurados.
É possível antever pelo menos quatro frentes de impacto relevantes:
Reafirmação ou ampliação da licitude da pejotização com base na autonomia da vontade
O STF poderá reafirmar a validade dos contratos firmados entre pessoas jurídicas, reconhecendo que a pejotização é lícita quando ausentes os elementos fáticos da relação de emprego (art. 3º da CLT), ainda que a prestação de serviços ocorra com habitualidade e exclusividade. Em outras palavras, o simples fato de uma pessoa física prestar serviços continuados como pessoa jurídica não seria suficiente, por si só, para caracterizar fraude trabalhista.
Tal entendimento tende a consolidar a jurisprudência iniciada nos julgamentos da ADPF 324 e do RE 958.252, nos quais o STF declarou a constitucionalidade da terceirização irrestrita, inclusive para atividades-fim, com base na liberdade de iniciativa e na autonomia privada.
Para empresas de tecnologia, isso significaria maior segurança jurídica para manter modelos de contratação mais flexíveis, desde que estruturados com boa-fé e respeitando a autonomia real do prestador de serviço.
Fixação de critérios objetivos para distinguir o PJ legítimo do vínculo dissimulado
O STF pode aproveitar a oportunidade para estabelecer balizas mais claras e objetivas sobre o que configura fraude na pejotização. Isso pode incluir, por exemplo:
- Presunção de validade do contrato entre pessoas jurídicas, salvo prova inequívoca de subordinação;
- Presunção de validade do contrato entre pessoas jurídicas quando o profissional é hipersuficiente, ou seja, possui ensino superior e receba, em 2025, mais que R$ 16.314,82 (duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social (RGPS))
- Relevância da pluralidade de clientes e da autonomia técnica na execução dos serviços;
- Vedação à exclusividade e à pessoalidade como indicativos centrais de relação de emprego;
- Avaliação da existência de ingerência direta e habitual do tomador sobre a forma de execução do trabalho.
A definição de tais parâmetros poderá contribuir para uma atuação mais uniforme da Justiça do Trabalho, reduzindo a subjetividade na requalificação de contratos e limitando decisões baseadas apenas na aparência ou na nomenclatura das funções.
Redistribuição do ônus da prova nas ações trabalhistas sobre pejotização
Um dos pontos críticos que o STF poderá enfrentar é a inversão do ônus da prova. Atualmente, o trabalhador que alega ter sido contratado como PJ de forma fraudulenta muitas vezes consegue reconhecimento de vínculo com base em presunções ou elementos frágeis. A depender do entendimento da Corte, poderá ser fixado que:
- Cabe ao trabalhador demonstrar de forma inequívoca a presença de subordinação jurídica, pessoalidade, onerosidade e habitualidade;
- A existência de contrato interempresarial formal, com emissão de notas fiscais e regime tributário regular, gera presunção de licitude, dificultando sua desconstituição.
Essa mudança teria impacto prático profundo na judicialização de contratos PJ, reduzindo o número de ações e aumentando a previsibilidade para as empresas.
Reconfiguração da jurisprudência trabalhista e limitação da atuação da Justiça do Trabalho
A depender do teor da decisão, o STF poderá traçar uma linha de contenção à atuação da Justiça do Trabalho em casos que envolvam contratos civis ou empresariais. Isso não significa imunidade total à requalificação, mas sim a exigência de critérios mais estritos para a descaracterização da forma contratual adotada entre as partes.
Tal posicionamento teria efeito pedagógico para as instâncias inferiores, reduzindo a margem de ativismo judicial e incentivando a adoção de critérios técnicos na análise das relações contratuais.
Abaixo, para uma melhor visualização, apresentamos um quadro comparativo com os possíveis cenários após o julgamento do STF sobre Pejotização
Quadro Comparativo – Possíveis Cenários após o Julgamento do STF sobre Pejotização
Cenário | Descrição | Efeitos para as empresas de tecnologia | Riscos e pontos de atenção |
1. Validação ampla da pejotização | STF reconhece a licitude da contratação via PJ sempre que houver autonomia real, mesmo com exclusividade ou habitualidade. | Aumenta a segurança jurídica para manter prestadores PJ em atividades especializadas, contínuas ou estratégicas. | Exige documentação robusta: contratos bem redigidos, ausência de subordinação e evidência de que o PJ exerce atividade empresarial autêntica. |
2. Licitude condicionada a critérios objetivos | STF reconhece a pejotização como válida apenas se preenchidos requisitos específicos (ex: pluralidade de clientes, ausência de pessoalidade, liberdade técnica, hipersuficiência). | Empresas devem revisar critérios e rotinas de contratação, priorizando PJ com autonomia real e múltiplos tomadores. | Exige adequação de políticas internas e reestruturação de parte da força de trabalho que opera como PJ em modelo exclusivo. |
3. Reforço da jurisprudência trabalhista restritiva | STF admite a atuação ampla da Justiça do Trabalho para desconsiderar contratos PJ quando houver indícios de fraude ou desvirtuamento da forma contratual. | Reforça risco de passivos trabalhistas, com continuidade da insegurança jurídica sobre contratações flexíveis. | Adoção de PJs se tornará viável apenas em situações excepcionais; tendência será migração para vínculo CLT ou outras formas legais seguras (ex: cooperativas, MEI com cautela). |
4. Redefinição do ônus da prova em favor da empresa | STF impõe ao trabalhador o dever de comprovar de forma clara a existência de vínculo empregatício, quando o contrato for entre pessoas jurídicas. | Reduz incentivo a ações judiciais frágeis e melhora o equilíbrio probatório nos litígios. | Contratos interempresariais devem estar bem fundamentados e evidenciar relação paritária para que a presunção de licitude se sustente. |
5. Criação de um modelo intermediário (“terceira via”) | STF sinaliza que é possível haver relações de trabalho fora da CLT, com proteção parcial de direitos, mesmo em contratos PJ. | Pode estimular criação de novos arranjos contratuais híbridos (ex: planos de benefícios, cláusulas de proteção), sem vínculo formal. | Risco de insegurança jurídica na ausência de regulamentação específica. Demandará acompanhamento legislativo e revisão de estratégias de gestão de pessoas. |
Conclusão
A decisão do STF de suspender os processos sobre pejotização marca o início de uma possível inflexão na jurisprudência trabalhista, com efeitos relevantes sobre a liberdade contratual das empresas. Para o setor de tecnologia — historicamente na vanguarda de modelos flexíveis de trabalho — o momento exige atenção redobrada: inovar continua essencial, mas agora sob um novo horizonte de incertezas jurídicas.
A equipe do Assis e Mendes acompanha de forma contínua os desdobramentos do julgamento e manterá seus clientes e parceiros atualizados à medida que o cenário se consolidar.
Fontes consultadas:
STF. Notícia oficial: “STF suspende processos sobre licitude de contratos de prestação de serviços”. Disponível em: noticias.stf.jus.br
CONJUR. STF x pejotização: qual decisão deve prevalecer? Disponível em: www.conjur.com.br
Sobre o Autor
Henry Magnus é advogado especializado em Direito Contratual, Direito do Trabalho, Direito Empresarial, Direito Societário e E-Sports. No Assis e Mendes, presta assessoria jurídica para empresas de diversos setores, contribuindo com sua expertise para garantir segurança jurídica e estratégias eficientes para os clientes.