A indústria de games movimenta bilhões de dólares globalmente e se consolida como uma das mais expressivas manifestações culturais e econômicas contemporâneas. No centro dessa cadeia de valor estão os ativos intangíveis: códigos-fonte, personagens, trilhas sonoras, roteiros, interfaces, marcas, mecânicas, entre outros. Todos esses elementos são protegidos por direitos de propriedade intelectual, cuja gestão, quando negligenciada, expõe estúdios e publishers a riscos jurídicos e perdas financeiras.
Este artigo analisa, de forma prática e jurídica, os principais desafios e oportunidades associados ao licenciamento de propriedade intelectual na indústria de games, especialmente no contexto de comercialização em marketplaces internacionais, como Steam, Epic Games, App Store e Google Play.
O que é licenciamento de propriedade intelectual no contexto dos games?
Licenciamento, no campo da Propriedade Intelectual (PI), é a autorização formal que o titular de um direito concede a terceiros para usar determinada criação protegida — seja ela uma marca, software, obra audiovisual ou musical — dentro de condições específicas.
No universo dos games, isso se traduz em contratos que:
- Permitem o uso de motores gráficos licenciados (como Unreal Engine ou Unity);
- Regulam o uso de obras de terceiros (como músicas, assets, plugins ou personagens licenciados);
- Estabelecem os limites da propriedade de jogos desenvolvidos sob encomenda;
- Organizam as regras de co-criação, joint ventures e sublicenciamentos em ambientes colaborativos;
- Formalizam a transferência de tecnologia, com ou sem exclusividade.
Segundo a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (WIPO, 2023), o licenciamento é um dos mecanismos mais eficazes de monetização da criatividade e de expansão internacional de ativos intangíveis.
Riscos de ausência de contratos sólidos
Apesar da relevância do tema, muitos estúdios ainda negligenciam a formalização de contratos de licenciamento. As consequências dessa omissão são sérias:
Impossibilidade de comercializar o game em marketplaces
Marketplaces como Steam, App Store ou Epic Games exigem que o desenvolvedor detenha ou tenha o direito formal de uso de todos os ativos utilizados no jogo. O não cumprimento dessa exigência pode levar à remoção do game da plataforma.
Exemplo real: Em 2020, o jogo “Scraper: First Strike” foi temporariamente retirado da Steam por alegações de uso indevido de assets licenciados sem autorização formal (Kotaku, 2020).
Riscos de ações por violação de direitos autorais ou marcas
Sem licenciamento adequado, o estúdio pode ser processado por uso indevido de material protegido — mesmo que tenha comprado um asset em um marketplace digital. A compra não é o mesmo que a licença de uso comercial irrestrita.
Litígios com freelancers ou estúdios colaboradores
A ausência de cláusulas claras sobre a titularidade dos direitos em contratos de trabalho ou prestação de serviços pode gerar disputas sobre a autoria e propriedade do jogo.
Caso emblemático: Em 2021, a publisher polonesa CD Projekt enfrentou questionamentos de direitos autorais de artistas terceirizados que contribuíram com conteúdo visual para a franquia “Cyberpunk 2077”.
Oportunidades no licenciamento estratégico
Quando bem estruturado, o licenciamento de PI permite:
Expansão para novos mercados
Com acordos de sublicença, é possível lançar versões localizadas do jogo em outros idiomas, culturas ou regiões, sem abrir mão da titularidade.
Monetização secundária de ativos
Marcas, personagens, trilhas e mecânicas podem ser licenciados para produtos derivados, publicidade, adaptações cinematográficas, brinquedos, NFTS e outros formatos.
Exemplo: A franquia “The Witcher”, originalmente um livro e depois game, gerou séries da Netflix, jogos mobile, livros adicionais e diversos produtos licenciados.
Alianças com estúdios internacionais
Contratos de co-desenvolvimento com cláusulas de licenciamento recíproco podem viabilizar projetos mais ambiciosos e com distribuição global, reduzindo custos e riscos.
Impacto direto nos marketplaces
Marketplaces internacionais exigem declarações de titularidade dos direitos sobre os games ofertados. Em geral, isso está presente nos Termos de Distribuição, que obrigam os desenvolvedores a garantirem:
- Que não há violação de direitos de terceiros;
- Que detêm ou licenciaram adequadamente todos os componentes do jogo;
- Que podem responder legalmente por qualquer infração.
Por isso, é fundamental antecipar o compliance contratual na fase de desenvolvimento, evitando retrabalho, bloqueios e prejuízos.
Considerações finais
O uso de ativos de terceiros no desenvolvimento de jogos não é apenas uma realidade técnica, mas uma questão jurídica central. Formalizar contratos de licenciamento é imprescindível para garantir segurança jurídica, legitimidade de uso e viabilidade comercial nos principais mercados internacionais.
Estúdios e publishers que investem em estratégias contratuais sólidas não apenas reduzem riscos, como ampliam suas oportunidades de monetização e internacionalização.
Sobre o Autor
Henry Magnus é advogado especializado em Direito Contratual, Direito do Trabalho, Direito Empresarial, Direito Societário e E-Sports. No Assis e Mendes, presta assessoria jurídica para empresas de diversos setores, contribuindo com sua expertise para garantir segurança jurídica e estratégias eficientes para os clientes.
Modelos de Cláusulas
7.1. Descrição detalhada dos ativos licenciados
CLÁUSULA 2 – DOS ATIVOS LICENCIADOS
A LICENCIANTE concede ao LICENCIADO o direito de uso dos seguintes ativos de propriedade intelectual, de sua titularidade ou sob seu legítimo controle:
- Trilha sonora original composta por [Nome do compositor], registrada sob ISRC nº [●]; II. Modelos 3D identificados como [●], utilizados nos personagens principais do jogo “[Nome do Jogo]”; III. Código-fonte das funcionalidades [●], desenvolvidas em linguagem [●]; IV. Marca registrada “[Nome da Marca]”, depositada no INPI sob nº [●], classe [●];
Parágrafo único. Os ativos acima descritos serão utilizados exclusivamente nos termos e condições deste contrato.
7.2. Alcance da licença
CLÁUSULA 3 – DO ALCANCE DA LICENÇA
A presente licença:
- É concedida em caráter [exclusivo / não exclusivo]; II. Tem validade por [x] anos, a contar da assinatura deste contrato, podendo ser prorrogada mediante acordo escrito entre as partes; III. É válida para todo o território [nacional / mundial], podendo ser utilizada em plataformas digitais, marketplaces, mídias sociais, publicidade e merchandising relacionados ao Jogo “[Nome do Jogo]”.
7.3. Finalidade da licença
CLÁUSULA 4 – DA FINALIDADE
A licença ora concedida destina-se exclusivamente à incorporação, distribuição e divulgação dos ativos licenciados no jogo “[Nome do Jogo]”, bem como sua utilização promocional em trailers, redes sociais, eventos, materiais de imprensa e conteúdos correlatos.
7.4. Cláusulas de royalties e pagamento
CLÁUSULA 5 – DA REMUNERAÇÃO E ROYALTIES
Pela licença ora outorgada, o LICENCIADO pagará à LICENCIANTE:
- A título de remuneração fixa inicial, o valor de R$ [●], pago em até [●] dias da assinatura deste contrato; II. A título de royalties, [x]% (por cento) sobre a receita líquida obtida com a comercialização do Jogo “[Nome do Jogo]”, apurada mensalmente;
- 1º. Entende-se por “receita líquida” o valor efetivamente recebido pelo LICENCIADO, deduzidos tributos incidentes, comissões de plataforma e estornos.
- 2º. Os valores de royalties deverão ser pagos até o 10º (décimo) dia útil de cada mês, acompanhados de relatório detalhado de vendas e receitas.
7.5. Restrições e obrigações
CLÁUSULA 6 – DAS RESTRIÇÕES E OBRIGAÇÕES
- É vedado ao LICENCIADO sublicenciar, ceder ou transferir, total ou parcialmente, os direitos ora concedidos, salvo mediante autorização expressa e por escrito da LICENCIANTE; II. O LICENCIADO compromete-se a não modificar, alterar ou explorar os ativos licenciados de forma que comprometa sua integridade, identidade visual ou valor de marca; III. O LICENCIADO deverá utilizar os ativos em conformidade com a legislação vigente, incluindo, mas não se limitando, às Leis nº 9.610/1998 (Direitos Autorais), nº 9.279/1996 (Propriedade Industrial) e à Lei nº 13.709/2018 (LGPD).
7.6. Cláusulas de resolução de disputas
CLÁUSULA 7 – DA RESOLUÇÃO DE DISPUTAS
As partes envidarão seus melhores esforços para resolver amigavelmente quaisquer divergências decorrentes deste contrato.
- 1º. Persistindo o conflito, as partes elegem a Câmara de Arbitragem Empresarial – Brasil (CAMARB), com sede em São Paulo/SP, para dirimir as controvérsias, nos termos da Lei nº 9.307/1996.
- 2º. O procedimento arbitral será conduzido em língua portuguesa, por árbitro único, escolhido de comum acordo entre as partes.
- 3º. Até a instauração da arbitragem, fica eleito o foro da comarca de [cidade/UF] como competente para medidas de urgência.
Fontes consultadas: