BEBÊ RENA E OS CRIMES DE PERSEGUIÇÃO (STALKING)

13 de maio de 2024

[ATENÇÃO: O texto pode conter spoilers da série]

 

A minissérie “Bebê Rena” (Baby Reindeer) estreou recentemente na plataforma de streaming Netflix e já é um sucesso no mundo inteiro. Baseada em acontecimentos reais da vida do escritor, ator e comediante Richard Gadd, que também faz o papel do protagonista Donny Dunn, a série retrata a perseguição física e digital feita por uma mulher chamada Martha Scott.

Fragilizada por seus próprios traumas e problemas, Martha desenvolve uma fixação doentia por Donny, cruzando os limites do aceitável e invadindo cada aspecto de sua vida. O que começa como uma paquera insistente se transforma em uma perseguição incessante, marcada por mensagens frequentes, aparições inesperadas e comportamentos cada vez mais inadequados e ameaçadores.

Donny, inicialmente hesitante em tomar medidas drásticas, em razão de sérios traumas, logo se vê dominado pelo medo e pela angústia. A obsessão de Martha o isola de seus amigos e familiares, impactando negativamente sua carreira e sua saúde mental. Desesperado por sua liberdade e bem-estar, ele busca ajuda da polícia, porém, sem conseguir muito apoio das autoridades, em razão das particularidades do caso, que provocam certo descrédito sobre a gravidade da perseguição.

Apesar de a Inglaterra, onde se passa a série e a história de Richard Gadd, já contar com previsões criminais contra a perseguição (stalking) e assédio (harassment), no Protection from Harassment Act 1997 (Ato de Proteção contra Assédio de 1997) e no Criminal Justice and Police Act 2001 (Ato de Justiça Criminal e Polícia de 2001), notamos que ainda existem muitas barreiras a serem superadas na tutela legal de casos como esse.

No Brasil, a tipificação penal é recente: o crime de perseguição foi incluído no Código Penal pela Lei nº 14.132, de 2021. O art. 147-A determina pena de 6 meses a 2 anos e multa para quem “perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade”.

O Código Penal só possui duas tipificações para o assédio. Especificamente com esse nome, existe o crime de assédio sexual, definido no art. 216-A (incluído em 2001) como o ato de “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”. Notamos que se trata do assédio sexual cometido no âmbito do trabalho. 

Por outro lado, neste ano de 2024 foram incluídos os crimes de “intimidação sistemática (bullying)” e “intimidação sistemática virtual (cyberbullying)”, que são consideradas formas de assédio, no art. 146-A e seu parágrafo único.

Apesar de serem termos frequentemente utilizados de forma intercambiável, perseguição e assédio apresentam diferenças importantes tanto em suas definições quanto em suas implicações legais e sociais.

Perseguição, também conhecida como stalking, caracteriza-se por um comportamento intencional e reiterado de um indivíduo que busca invadir a privacidade de outro, causando-lhe medo, angústia ou sofrimento emocional. Pode se manifestar através de várias maneiras, como por contato frequente e indesejado, por meio de ligações,  mensagens, e-mails e presentes; por monitoramento da vítima, seguindo a pessoa, observando sua casa ou local de trabalho; por ameaças verbais, escritas ou implícitas, que geram insegurança na vítima; ou por danos à propriedade, como vandalismo no carro, casa ou outros pertences da vítima.

O assédio, por outro lado, se caracteriza por comportamentos abusivos e hostis que visam intimidar, humilhar ou constranger a vítima, criando um ambiente hostil e intimidante. Também assume diversas formas, como: assédio moral, assédio sexual, discriminação, violência doméstica, abuso psicológico, bullying e cyberbullying.

Nos ambientes digitais, a perseguição e o assédio são facilitadas em razão da superexposição dos indivíduos nas redes sociais e das maiores possibilidades de contato, mesmo sem autorização prévia, por ligações, e-mails, SMS, mensagens em redes sociais, entre diversas outras.

O Direito deve contemplar essas novas formas de relações interpessoais e suas complexidades, de modo a assegurar o pleno exercício de direitos fundamentais como a liberdade, inclusive nos meios virtuais. Institutos legais anteriores se mostram ineficazes nos ambientes digitais em casos de cyberstalking (perseguição digital): medidas restritivas bastam para manter afastados os perseguidores de suas vítimas? Como assegurar que não irão mais ter acesso aos conteúdos postados pelas vítimas ou impedir que entrem em contato de outras formas, por exemplo, de forma anônima ou por contas falsas (fake)?

Casos como esses devem ser tratados com extrema cautela, de modo a considerar os diversos aspectos interdisciplinares que são afetados: direitos fundamentais, direitos da personalidade, responsabilidade das plataformas de aplicações de internet, proteção de dados, segurança cibernética, entre outros. O profissional do Direito deverá agir com estratégia, presteza e eficiência para conter os danos para a vítima ao mínimo possível e garantir maior proteção contra novas incursões do agressor.

Quando envolver crianças e adolescentes, e são muitos os casos, deve ser tomado cuidado redobrado, com atuação imediata para proteger os menores dos efeitos nocivos desses tipos de ataques, que podem prejudicar seu pleno desenvolvimento.

 Combater a perseguição e o assédio nos ambientes físicos e digitais é um compromisso coletivo. É fundamental que as plataformas, governos, órgãos de defesa dos direitos humanos e a sociedade civil trabalhem em conjunto para aprimorar as medidas de segurança e proteção dos usuários online, promover a educação digital e conscientizar sobre os perigos da perseguição e assédio, incentivar a denúncia de casos de violência online e pressionar por leis e políticas públicas mais eficazes no combate a essas práticas.

 

Compartilhe:

Mais Artigos

Cobrança de tráfego de dados por provedores: o que diz o PL 469/2024 e como isso pode afetar sua empresa

Em maio de 2025, a Comissão de Ciência, Tecnologia e Inovação  realizou uma audiência pública para debater. O debate sobre a cobrança de tráfego de dados por provedores está avançando …

Novo decreto do SAC: o que muda para sua empresa em 2025

Empresas que oferecem atendimento ao consumidor — ou contratam serviços de SAC para lidar com seus clientes — precisam ficar atentas ao novo decreto do SAC, que está reformulando as …

Plano Nacional de Data Centers (Redata): O que muda para empresas que usam ou operam infraestrutura digital no Brasil

O ambiente digital brasileiro está passando por uma fase de transformação com o lançamento do Plano Nacional de Data Centers (Redata)  e a iminente publicação de uma Medida Provisória que …

STF reconhece a inconstitucionalidade parcial do artigo 19 do Marco Civil da Internet

O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a inconstitucionalidade parcial do artigo 19 do Marco Civil da Internet, em julgamento finalizado em 26/06/2029. O julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1037396 (Tema 987 …

Uso do dados.gov.br por empresas: oportunidades e riscos com a LGPD

O uso de dados.gov.br por empresas é uma tendência que cresce a cada dia. O portal do Governo Federal oferece dados públicos úteis, mas é preciso cuidado ao usá-los — …

Roblox na mira da justiça Americana por rastreamento oculto  de dados de crianças

O universo digital, especialmente o mercado de jogos online, tem enfrentado desafios jurídicos cada vez mais complexos, sobretudo quando envolve a proteção de dados de crianças e adolescentes. Recentemente, uma …

Entre em contato

Nossa equipe de advogados altamente qualificados está pronta para ajudar. Seja para questões de Direito Digital, Empresarial ou Proteção de Dados estamos aqui para orientá-lo e proteger seus direitos. Entre em contato conosco agora mesmo!

Inscreva-se para nossa NewsLetter

Assine nossa Newsletter gratuitamente. Integre nossa lista de e-mails.